terça-feira, 14 de junho de 2016

Que homem é esse?

Dando uma olhada nos arquivos do meu Blogger encontrei esse texto que escrevi no começo de minha transição, em 2011, quando ainda estava conquistando meu laudo de transexual e a todo o momento me questionavam sobre esse babado de ser homem - como se tivesse receita e forma... tipo bolo. Achei o mesmo entre os arquivos postados no antigo blogger FTM Brasil, que saiu do ar em 2012, senão me falha a memória.

"Depois de conversar com várias mulheres e homens homossexuais, não querendo encher nem esvaziar o saco de ninguém, participo que fiquei inquieto e pensativo sobre este problema da identidade masculina: o que é ser homem e quais as conseqüências de sê-lo? Que tipo, ou qualidade de homem se pode ser e ter, principalmente para este segmento feminino, ou de alguma forma “feminilizado”, de percebê-lo. Sei que não está muito claro também o que as pessoas andam pensando sobre o que é ser mulher, mas este problema que acredito ser de mesma complexidade, só em outro momento empreenderei tentar compreender, deste modo, em forma de texto. É melhor assim, uma coisa de cada vez. Claro que para pensar sobre isto, “que homem é esse” que anda pela cabeça das pessoas, fundamentalmente não posso fugir da realidade do meu tempo histórico (2011) e de meu contexto social em termos de padrões, papéis e juízos de valores. E como gosto de pensar não me contento com a expressão do senso comum, simplesmente vazia, que rola como bola, de que “homem é homem”. Faço esta pergunta à minha sociedade e aos meus pares: o que é ser homem? Você sabe qual é o conteúdo desta palavra? O que representa? O que se pode fazer com ela?

É de modo simplório e pessoal que começo a responder, tateando um caminho para construir minha expressão, meu entendimento social do tema: - sou um homem porque desejo sexualmente as mulheres. E sei que entre alguns grupos de nosso contexto social contemporâneo ou até de um passado, próximo ou distante, entre homens, sabemos que o somos por causa das mulheres. Tipo contradição básica: sol/lua, positivo/negativo e cara/coroa. E não me entenda mal, prefiro TV em cores. Voltando a questão: sou homem porque desejo as mulheres como se supõe que um homem as deseje, e como um pavão ou leão, quero ser atraente para elas, chamar suas atenções e possuí-las. Vejam bem, me explico assim porque estou teorizando sobre o assunto de modo genérico, não estou assumindo publicamente que sou o que não sou, ou seja - um galinha.

Suponho em meu consciente e mais ainda no meu inconsciente que as características sexuais masculinas, secundárias ou psicológicas, atraem as mulheres, então, como quero tê-las (sem chavões ou medo de tocar no assunto) naturalmente, e até artificialmente, me masculinizo. O porém está não em tornar-se um ser masculino, um macho, um homem, mas em que tipo de homem, onde se acha o modelo ou quais qualidades ou defeitos masculinos me identificam. Bem, sem querer confundir alguém que responda simplesmente “meu pai”, pois hoje em dia este parente anda em falta no mercado das famílias, assumo os ares da filosofia e relembro uma referencia do que é ser gente para mim a partir do depoimento de dois filósofos contemporâneos e importantes, Gilles Deleuze e Félix Guattari, dado na coleção “Mil Platôs – capitalismo e esquizofrenia”, vol. I: “Escrevemos o Anti-Édipo a dois. Como cada um de nós era vários, já era muita gente (Editora 34, 1995, pg. 11).”

Entendo que existam vários homens diferentes indo do patife ao pai de família, do inventado ao que se inventa: moralista, religioso, machão, feminino, rebelde, vagabundo, Dom Juan, metrossexual, educado, bruto, o de camisa social listrada ou não, o gay, o nazista e o que convive bem com a diferença, entre outros... E entendo também que existam alguns homens possíveis: o biológico (que produz esperma), o sexual que somos nós que nos reconhecemos como transgêneros e o social, sobre o qual transcreverei alguns trechos de um artigo de um antropólogo de nome Pierre Clastres, chamado o “O arco e o cesto”, para que as pessoas continuem pensando sobre o assunto.

"Podemos então medir o valor e o alcance da oposição sócio-econômica entre homens e mulheres porque ela estrutura o tempo e o espaço dos guaiaqui. (...)

Os guaiaqui apreendem essa grande oposição, segundo a qual funciona sua sociedade, por meio de um sistema de proibições recíprocas: uma proíbe as mulheres de tocarem o arco dos caçadores; outra impede os homens de manipularem o cesto. (...) Os sentimentos que cada sexo experimenta com relação ao objeto privilegiado do outro são muito diferentes: um caçador não suportaria a vergonha de transportar um cesto, ao passo que sua esposa temeria tocar o arco. (...) Se uma mulher pensasse em pegar um arco, ela atrairia, certamente, sobre seu proprietário o pane, quer dizer, o azar na caça, o que seria desastroso para a economia dos guaiaqui. Quanto ao caçador, o que ele vê e recusa no cesto é principalmente a possível ameaça do que ele teme acima de tudo, o pane. Pois, quando um homem é vítima dessa verdadeira maldição, sendo incapaz de preencher sua função de caçador, perde por isso mesmo sua própria natureza e a sua substância lhe escapa: obrigado a abandonar o arco doravante inútil, não lhe resta senão renunciar à sua masculinidade e, trágico e resignado, encarregar-se de um cesto. A dura lei dos guaiaqui não lhe deixa alternativa. Os homens só existem como caçadores, e eles mantêm a certeza da sua maneira de ser preservando o seu arco do contato da mulher. Inversamente, se um indivíduo não consegue mais realizar-se como caçador, ele deixa ao mesmo tempo de ser um homem: passando do arco para o cesto, metaforicamente ele se torna uma mulher.


(...) havia entre os guaiaqui dois homens que carregavam cestos: um (...) era panema (e nenhuma mulher queria saber dele, mesmo a título de marido secundário. (...) Como o azar na caça lhe obstruía o acesso às mulheres, ele perdia, ao menos parcialmente, sua qualidade de homem, (...) no campo simbólico do cesto.

O segundo caso é um pouco diferente. (...) era na verdade um sodomita. (...) era homossexual porque era panema. (...) para os próprios guaiaqui ele era um Kyrypy-meno (ânus-fazer amor) porque era panema.

(...) estava tão à vontade, tranqüilo e sereno em seu papel de homem tornado mulher” enquanto o outro “parecia inquieto, nervoso e freqüentemente descontente. (...) os dois eram panema, seu estatuto positivo deixaria de ser equivalente, pois um deles (...) embora obrigado a renunciar parcialmente às determinações masculinas, permanecera um homem, enquanto o outro, (...) assumira até as últimas conseqüências sua condição de homem não-caçador, tornando-se uma mulher.”

[A sociedade contra o estado: pesquisas de antropologia política. Rio de Janeiro, F. Alves, 1978. Pags. 74-77]."

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